A greve do Século XXI: forma de solidariedade

Fernando de Almeida Prado*

Diz-se que no cais de Paris - à beira do Rio Sena - havia uma praça na qual trabalhadores se reuniam em longas filas, em busca de emprego e de uma oportunidade de vender seu tempo em troca de dinheiro. De tempos em tempos, com os naturais conflitos entre patrões e trabalhadores, era comum que estes cruzassem os braços e se recusassem a realizar qualquer trabalho. Muitas vezes, os trabalhadores ficavam parados por dias, até que algum dos lados cedesse: ou os patrões aceitavam as condições dos trabalhadores, ou estes desistiam do conflito e voltavam a trabalhar.

Esta praça à beira do Rio Sena se chamou Place de Grève até 1803. É ela quem deu nome aos trabalhadores que se recusam a trabalhar em busca de melhores condições de vida. Ao longo de muitos séculos de sua existência, a greve deixou de ser um simples movimento de pessoas para se tornar - inicialmente - um ato de rebeldia criminoso e, modernamente, um direito social fundamental mundialmente reconhecido.

A história do Brasil não pode ser estudada sem adentrar nos movimentos grevistas. Por motivos e fundamentos distintos, as greves movimentaram o país e derrubaram regimes e ditaduras. O movimento sindical sempre foi um forte vetor de transformação social e política, de índole progressista: impulsionou desde o fim da República Velha, nos anos 1930, ao fim da Ditadura militar, já nos anos 1980.

Como resultado de tantas lutas, a Constituição de 1988 elencou o direito de greve como direito fundamental, "competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender". Lembrando que mesmo os direitos fundamentais devem ser limitados, o exercício do direito de greve foi temperado pela lei n. 7.783/89. Referida lei possui regras de diversos tipos: algumas visam organizar a greve, outras estabelecem direitos e ainda algumas limitam o poder patronal no momento da crise.

A lei exige que os trabalhadores comuniquem a intenção de realizar greve, com antecedência de 48 horas, para as atividades não essenciais, ou de 72 horas, para as atividades essenciais. A definição de atividade essencial ou não decorre da própria lei: esta prevê um rol de atividades essenciais (ex: tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; etc.), nas quais é obrigatória a manutenção de atividades indispensáveis para a população. Todas as demais atividades são consideradas "não essenciais".

Desde 1989 não existe a exigência de autorização prévia para realização de greves, mas a lei proíbe a realização de atos abusivos ou que não tenham relação com as efetivas condições de trabalho. Nestas hipóteses, é comum que os sindicatos sejam penalizados com altas multas em caso de descumprimento e manutenção de greve abusiva.

De modo formal, as pautas sindicais deverão ser previamente deliberados por meio de Assembleia da categoria, não sendo permitida a greve quando houver acordo vigente entre as partes. Além disso, a lei permite que o Poder Judiciário "resolva" a greve por meio de julgamento de dissídios coletivos, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, o que muitas vezes é feito de modo artificial para ambas as partes.

Em defesa de direitos, a lei impede a demissão de trabalhadores durante o movimento grevista, e também a contratação de trabalhadores substitutos, com objetivo de esvaziar a greve. Outro direito dos trabalhadores, que é extremamente importante, mas muitas vezes esquecido, é a proibição da realização de greves empresariais, denominada de Lockdown.

No início deste mês de julho, trabalhadores de aplicativos - que formalmente são consideradas autônomos e não possuem registro de emprego com nenhuma empresa - decidiram realizar movimento grevista. É ao mesmo tempo curioso e revigorante perceber que, no atual momento de crise institucional e democrática que vivemos, o direito de greve começou a ser exercido por trabalhadores que não estão vinculados ao tradicional modelo de trabalho CLT.

Descartando toda a modelagem legal burocrática, a greve dos "funcionários de aplicativos" (funcionários entre aspas, uma vez que estes empregados - paradoxalmente - não tem empregadores) é um choque de realidade ao modelo capitalista atual, cuja desregulamentação e ausência de limites ganham cada vez mais força. De modo profundo, a greve despertou solidariedade por parte dos consumidores e de todos aqueles que se vêem em luta contra a precarização das formas de trabalho.

Torcemos para que a greve no século 21 volte a ser uma forma de expressão de solidariedade social e atenção da coletividade para as classes menos favorecidas.

(Artigo publicado originalmente na versão impressa do Diário do Grande ABC)

*Fernando de Almeida Prado é advogado, professor universitário e sócio-fundador do escritório BFAP Advogados