Temporalidades do direito e a pandemia

Por Estadão

A cada dia que se segue o direito busca soluções para minimizar os estragos sociais provocados com o avanço do coronavírus. A comunidade segue atenta: como o direito pode contribuir para controlar e assegurar a estabilidade social tão necessária para superar a crise? Será que o direito consegue controlar as repercussões devastadoras no campo da saúde pública, da economia e da política? Vale lembrar que o direito também pode ser elemento disruptivo, aprofundando crises caso medidas desconcentradas sejam adotadas.

A despeito das inúmeras críticas e preocupações que parcela da comunidade jurídica coloca com muita coerência sobre o caso brasileiro, sobretudo diante do exercício de um “governo por decreto”, sem o respaldo da proteção das garantias e direitos fundamentais, este vírus revela as diferentes temporalidades do direito, bem como marca um ceticismo em relação à produção da segurança jurídica diante de tamanha instabilidade institucional predominante no país.

Direito sem sociedade perde sentido. Pior, sem o respeito e compreensão da operação científica e da saúde, qualquer medida jurídica está fadada ao fracasso. Por ora muitas complicações surgem mesmo diante de tantas medidas já adotadas – até o final do mês de abril de 2020, foram editadas 10 medidas provisórias, muitas outras estão a caminho para tentar resgatar a economia -, adicionam-se as sucessivas mudanças ministeriais que conduzem o governo federal a um cenário desolador. Falta coordenação, diálogo e planejamento. Tais circunstâncias possibilitam uma reflexão sociológica sobre o descompasso entre as diferentes temporalidades do direito e a pandemia.

Esta observação – longe de afastar a necessidade de um permanente reforço e ajuste institucional – atesta a dificuldade de encontrar soluções para a instabilidade provocada pelo vírus apenas por meio da atuação de um dos poderes. O descrédito é ainda maior se a superação representar a quebra do pacto federativo, revelando a fragilidade de depender de alternativas construídas via barganha política em ano eleitoral, ou, ainda, justificadas por meio de negacionismos e de discursos de ódio.

Num determinado momento, União edita medidas provisórias, com orientações para regulamentar a Lei Federal no 13.979/2020 (lei nacional da quarentena), delineando estratégias que ampliam e limitam a circulação e a prestação de serviços públicos e atividades essenciais. Na sequência, Estados e Municípios expedem atos para preservar a população diante da realidade local de cada ente, por vezes contrariando as medidas federais. Ato contínuo, tribunais reconsideram e zelam pelo pacto federativo, tornando medidas inócuas e desconcentradas. Qual caminho seguir? Planejamento, diálogo e coordenação com todos os órgãos precisam ser efetivados, de modo premente.

Em que pese o esforço no plano normativo, sem a devida cooperação entre os Poderes, em todos os planos da federação, conforme estabelece o artigo 2º, da CRFB/88, a superação da pandemia no país vem se mostrando tormentosa. Este entendimento foi registrado pelo STF em recentes decisões liminares, nos diferentes processos constitucionais (ADI 6341, ADPF 672 e SS 5364) promovidos contra atos do Poder Executivo, praticados durante a crise de saúde pública decorrente da pandemia. No entanto, a depender também dos contornos de uma jurisprudência da crise, as respostas retroativas não serão claras, sobretudo considerando as dificuldades de fundamentar e decidir com base nos argumentos pelo Judiciário brasileiro. A crise para o direito revela um ônus excepcional para fundamentar decisões complexas, às vezes urgentes, sendo que nem sempre juízes e tribunais conseguem assumir este ônus com destreza, inclusive por questões extrínsecas aos órgãos.

Desde as eleições de 2018, este cenário institucional não é novidade no Brasil. Agora, revela-se o cada vez mais evidente imobilismo dos poderes diante da inusitada e desoladora pandemia. Precisamos mudar depois de tanta consternação política. Estamos fadados a ficar em permanente crise? Crise, aqui, aproxima-se como uma forma que se distingue da estabilização, relaciona-se também com a ideia de evolução, pois pressupõe variação e estruturas que possibilitam transformação. No entanto, resgatando as abordagens sistêmicas sobre a sociedade, crise não é algo latente, é presente e dependente das temporalidades de cada sistema. É momento para observar o tempo e as respostas do direito, da saúde, da economia e da ciência.

Diante das demandas decorrentes da pandemia, as respostas jurídicas são dilatadas e, por vezes, não satisfatórias aos problemas da saúde ou mesmo às questões econômicas. É o caso de compreender a necessária atuação da ciência e da saúde, acatar as orientações da comunidade médica e dialogar de forma aberta sobre as consequências e alternativas para cada cenário, caso contrário esta pandemia pode confirmar em alguma medida o fracasso social do direito. Não obstante uma atenção deve ser apontada: Se de um lado, experts no interior do sistema jurídico ou político revelam que as respostas científicas não estão bem equipadas para fornecer soluções para o direito ou para a política, uma vez que possuem uma temporalidade distinta relacionada ao processo de investigação, por vezes muito vagaroso. Do outro, quando o direito não consegue articular as operações da ciência e da saúde, estragos podem ser dramáticos.

É preciso alcançar a uma posição intermediária para preservar a vida (e não o vírus). Aliás, para o vírus, esta confusão institucional só reforça sentido: só se torna vida quando entra no hospedeiro, o que é favorecido pelo ambiente institucional de desordem. Certamente não nos resta aguardar uma imunidade de grupo, mesmo sem a garantia de uma vacina num curtíssimo tempo, com o aumento vertiginoso de mortes subnotificadas e diante de uma desordem governamental. Diante de tanta tecnologia disponível hoje, para a vida pública, a pandemia exige uma resposta institucional concertada e contínua de todos os poderes e da sociedade como um todo, atenta para as temporalidades.

Mais uma vez, defendemos a necessidade de revisitarmos os objetivos fundamentais de nossa Constituição. Devemos olhar para a ordem máxima constitucional de respeito da dignidade da pessoa humana, acima de tudo, associada a um equilíbrio entre a liberdade e a ordem mundial de solidariedade social.

*Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie

*Mario Thadeu Leme de Barros Filho é professor doutor das disciplinas de Humanidades do Curso de Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde do Hospital Albert Einstein e sócio fundador do escritório BFAP Advogados

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