Portaria MTP proíbe exigência de comprovante de vacinação para contratação de empregado

 

Em 01 de novembro de 2021, o Governo Federal publicou a Portaria nº 620, do Ministro de Estado do Trabalho e Previdência (“MTP”), que diz versar sobre a não discriminação no mercado de trabalho.

Claramente, o real objetivo da Portaria, todavia, é “enquadrar” empresas que atuam de forma firme com relação ao combate à Covid.

O art. 1º da Portaria nº 620 reforça ser proibida a prática de medidas discriminatórias nas relações de emprego, em nada inovando o texto da Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995, que há décadas já proíbe diversas hipóteses de discriminação (exigência de atestados de gravidez e esterilização, saúde, idade, etc).

Os parágrafos 1º e 2º da Portaria nº 620 inovam no texto legal, ao afirmar ser atitude discriminatória exigir comprovante de vacinação contra COVID como requisito para contratação ou manutenção de empregos.

Ainda, seu parágrafo 2º entende também ser prática discriminatória a demissão por justa causa de empregado que não apresentar comprovante de vacinação.

Por fim, a Portaria nº 620 permite aos empregadores realizar (e custear) testagem contra a Covid e determina que a realização do exame é obrigatória para os empregados, com exceção dos que apresentarem comprovante de vacinação.

Em nossa visão, o Governo Federal continua com uma visão equivocada e isolada em sua política de combate à Covid.

E são vários os erros da Portaria: 

(i) a Portaria está prestando um desserviço ao combate à Covid, agindo de modo contrário ao de diversos países mais desenvolvidos (EUA e alguns países da Europa, por exemplo);

 

(ii) novamente na contramão das boas práticas internacionais, a Portaria deixou às empresas o custo da realização de exames, o que entendemos ser equivocado. Alguns países (ex:Itália e EUA) deu esta obrigação aos empregados que se recusarem a fornecer comprovante de vacinação;

(iii) legalmente, uma Portaria não pode ampliar (ou restringir) as hipóteses de justa causa, previstas em lei ordinária, sendo inconstitucional neste ponto. Desta forma, a Portaria deve ser entendida como de caráter meramente orientador;

(iv) o entendimento da Portaria contrasta com parte da Jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho, o que trará insegurança jurídica às empresas, especialmente com relação à situações passadas;

 

RESUMO-VISÃO BFAP

A Portaria nº 620 é inconstitucional e irá criar mais insegurança jurídica para as demissões (com ou sem justa causa) relacionadas à COVID.

Como sempre tem ocorrido, o Governo Federal está agindo tardiamente e de modo equivocado, no combate à COVID.

 

 

Fernando de Almeida Prado Sampaio é advogado, professor universitário e sócio-fundador do BFAP Advogados.

II Boletim Informativo Trabalhista - STF declara constitucional a prestação de serviços intelectuais por meio de empresas

Até os anos 90 e início dos anos 2000, era corriqueira a visão, na doutrina e jurisprudência, de que trabalhos intelectuais não eram sujeitos às regras de uma relação de emprego (“regime CLT”), por serem intrinsecamente incompatíveis com o requisito da subordinação jurídica, previsto no art. 3o da CLT.

Essa visão foi sistematicamente desconstruída na doutrina e também em milhares de decisões da Justiça do Trabalho, reconhecendo o vínculo de emprego de prestadores de serviços intelectuais. Ainda, a administração pública passou a lavrar autos de infração, também reconhecendo vínculo de emprego.

Desde 2018, todavia, há uma clara sinalização do Supremo Tribunal Federal em prol de formas alternativas ao regime CLT, o que - acreditamos - ainda irá irradiar efeitos junto à Justiça do Trabalho.

A primeira decisão paradigmática foi tomada em agosto de 2018, no julgamento que versava sobre a possibilidade de terceirização de atividades fim (ADPF n. 324 e RE 958252).

Naquele julgamento, ficou assentada a tese de que é “lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas”.

Ano passado, o STF reafirmou sua posição favorável à modelos alternativos à CLT em dois relevantes casos: Em abril, declarou constitucional o regime de contratação autônoma de transporte rodoviário de cargas, sem vínculo empregatício (ADC 48 e ADI 3961).

Em 21 de dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 66 (“ADC”) que versa sobre a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005 [1], que - em essência - permitia a pejotização de atividades intelectuais.

A autora da ADC alegou que este artigo estava sendo desconsiderado em diversas decisões da Justiça do Trabalho e Federal e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que entendem que as empresas poderiam estar burlando o fisco ou flexibilizando normas trabalhistas por meio da chamada “pejotização”.

Em sua minuta de voto (o Acórdão ainda não foi publicado), a Relatora Min. Cármen Lúcia apontou que existe complementariedade entre os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa.

Sob essa perspectiva, ocorre a densificação da liberdade de organização da atividade empresarial, com flexibilidade. Assim, entendeu-se que o artigo discutido é compatível com a liberdade de iniciativa, consagrada como fundamento da República.

Em nossa visão, trata-se de mais um importante marco que reforça a atual visão do STF, no sentido de validar formas alternativas de trabalho.

[1] “Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.”

Elaborado por Fernando de Almeida Prado, advogado, professor universitário e sócio-fundador do BFAP Advogados.

Vacinação contra Covid pode levar a conflito em empresas

O início da campanha de vacinação contra à Covid-19 no país deve incentivar o aumento dos conflitos entre empresas e funcionários. A possibilidade de funcionários se recusarem a tomar a vacina contra a Covid-19 cria agora uma nova razão para a disputa judicial.

Ao menos até outubro do ano passado, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já havia registrado 16.301 ações trabalhistas relacionadas à crise sanitária. Os motivos variavam entre a prevenção à saúde do trabalhador, com relação ao risco de contágio pelo novo coronavírus, e a exigência de direitos trabalhistas como o pagamento de verbas rescisórias.

Após a aprovação, ontem, das vacinas CoronaVac e AstraZeneca, o Governo Federal confirmou que dará início à vacinação na quarta-feira, enquanto o governo do Estado já começou ontem a vacinar na Capital.

Medidas Legais

Em Dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Poder Público pode estabelecer medidas legais para a obrigatoriedade da vacina, mas que não pode determinar a vacinação forçada. Especialistas são unânimes ao apontar que o tema da vacinação deve resultar em um aumento nos conflitos entre trabalhadores e empresas. Por outro lado, o tema ainda é inédito no Judiciário e não há consenso a respeito do limite das empresas com relação à imposição de exigências sanitárias.

A principal discussão é se o empregador possui o direito de barrar a entrada do trabalhador no local da empresa, caso não esteja vacinado, e de obrigá-lo a permanecer em trabalho remoto. O descumprimento da determinação resultaria em demissão por justa causa.

Fernando de Almeida Prado, advogado, professor e sócio-fundador do escritório BFAP Advogados, explica que a imposição de medidas restritivas foi concedida pelo Supremo Tribunal Federal apenas aos governos. Portanto, o papel do Poder Público não deveria ser confundido com o do empregador. “A empresa não pode desligar um funcionário por justa causa porque ele se recusou a tomar vacina, da mesma forma que não pode abrigá-lo a tomar a vacina. O que ela pode é, eventualmente, apontar para as autoridades públicas que uma pessoa está se recusando”, analisa.

O advogado afirma que atualmente há empresas que afastam os funcionários no caso de contato com outras pessoas contaminadas. “Imagine que alguém teve contato com uma pessoa doente, mas não tem nenhum sintoma. Então ele não está doente e não tem obrigação de se afastar do trabalho. É comum que as empresas impeçam que ele trabalhe fisicamente na sede, seja fazendo o home office ou, se não for possível, por meio de uma licença remunerada”, relata.

Com informações do Jornal A Tribuna e do Portal Previdência Total.

Boletim Informativo Trabalhista - STF altera índice de correção das dívidas trabalhistas

Em 18 de dezembro de 2020, na última sessão do ano, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento de quatro ações (ADC 58, ADC 59, ADI 5.867 e ADI 6.021) que discutiam a constitucionalidade da utilização da TR como índice de correção para processos trabalhistas.

A discussão é em sentido amplo, ou seja, tanto como correção dos débitos trabalhistas e também dos depósitos recursais trabalhistas.

A constitucionalidade da utilização da TR como índice de correção de débitos é uma questão recorrente perante o STF, que recentemente declarou inconstitucional a utilização dela para a correção de precatórios (ADI's 4357 e 4425).

Os débitos trabalhistas eram corrigidos pela TR na fase pré-judicial (isto é, a partir da inadimplência). Já na fase judicial, eram aplicados juros de mora de 12% ao ano, acrescidos de correção monetária pela TR (Lei 13.467/2017) ou IPCA-E (por força de decisão judicial do TST na Arguição de Inconstitucionalidade julgada pelo Órgão Pleno do TST - n. 479-60.2011.5.04.0231).

Sobre os débitos trabalhistas, o Supremo Tribunal Federal determinou que deve ser aplicado o IPCA-E na fase pré-judicial e a Taxa Selic na fase judicial (a partir da citação).

Considerando que a Taxa Selic - taxa básica de juros da economia - já engloba juros moratórios e correção monetária, a partir da citação, é impedida a aplicação de outros índices de atualização.

O fundamento utilizado para declaração de inconstitucionalidade da TR como índice de correção foi no sentido de que a correção monetária dos débitos judiciais tem por objetivo a reposição do poder aquisitivo da moeda. Em razão disso, entenderam pela necessidade de afastamento da TR, a qual é calculada pelo Banco Central e, usualmente, tem sido zerada.

Usualmente as declarações de inconstitucionalidade de lei possuem efeitos retroativos, eliminando-se a norma por inteiro desde sua origem (como se a lei não tivesse existido).

Para garantir a segurança jurídica, todavia, foi determinada a modulação dos efeitos da decisão proferida, de modo que os pagamentos já feitos serão considerados perfeitos e encerrados, sem possibilidade de rediscussão de seus valores.

Por outro lado, o novo índice deverá ser aplicado aos processos em curso, tanto os que estejam sobrestados como aos nos quais houve trânsito em julgado, desde que não

haja manifestação expressa quanto aos índices de correção monetária e as taxas de juros.

Por fim, por se tratar de decisão em sede de controle e constitucionalidade, a decisão tem efeito vinculante e será aplicada para todos processos em andamento.

Pré-Processual

Como era: TR

Como ficou: IPCA-E

Processual (a partir da citação)

Como era: IPCA-E* + 12% a.a.

Como ficou: Selic

*entendimento consagrado pelo TST.

Elaborado por Fernando de Almeida Prado, advogado, professor universitário e sócio-fundador do BFAP Advogados.

Commodities e desmatamento: como o Reino Unido pretende virar esse jogo e os impactos para o Brasil?

Na esteira das iniciativas do Pacto Ecológico Europeu lançadas pela União Europeia para conter as mudanças climáticas e conservar os recursos naturais, o Reino Unido anuncia uma força tarefa para implementar 14 ações prioritárias para conter o desmatamento ilegal a nível global. Com isso, visa contribuir para alcançar sua meta de neutralidade de emissões de CO2 até 2050. A principal é implementar um sistema de verificação para impedir a comercialização de commodities agrícolas provenientes de áreas de desflorestamento ilegal – as chamadas “forest risk commodities”.

Desmatamento ilegal: o agronegócio precisa assumir a liderança

A iniciativa deve ser interpretada tendo em vista o novo protagonismo que o Reino Unido pretende exercer externamente: efetivado o Brexit, o país volta a ser independente na definição de suas políticas públicas internas e a disputar influência global de temas como meio ambiente, segurança e comércio exterior. O Reino Unido terá, já no curtíssimo prazo, duas oportunidades para essa diplomacia pós-Brexit: em maio de 2021, participará da Convenção da Diversidade Biológica (a COP15, em Kunning, na China); e, em novembro do mesmo ano, será anfitrião da COP26 na cidade de Glasgow (a próxima conferência da ONU para a Convenção do Clima).

Internamente, o pontapé para ações concretas foi dado: encontra-se em consulta pública uma proposta para obrigar que empresas adotem um sistema de controle de origem de produtos agrícolas que distribuem ou comercializam, sob pena de multa e sanções civis. A consulta é promovida pelo Departamento de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais (ou DEFRA, na sigla em inglês).

Faz parte da tradição política e jurídica britânica se apoiar na capacidade e liberdade privadas para implementar as ações necessárias, cabendo ao Estado definir e fiscalizar os standards a serem observados. Precedente semelhante é a legislação sobre a cadeia de produtos madeireiros, que proíbe a colocação no mercado de produtos cuja origem seja de extração ilegal (o Forest Law Enforcement, Governance and Trade – FLEGT).

A proposta em consulta pública tornaria ilegal a utilização, por empresas, de commodities agrícolas por que não foram produzidas de acordo com a legislação do seu local. Para garantir a origem legal de tais commodities, as empresas seriam obrigadas a conduzir due diligences (ou seja, verificações conjuntas) junto aos seus fornecedores para garantir que o produto não seja proveniente de área de desmatamento ilegal. As commodities agrícolas alvo são aquelas que o Reino Unido mais consome: proteína animal, couro, cacau, óleo de palma, papel e celulose, madeira, borracha e soja.

Outra característica importante da legislação em estudo é a definição abrangente do que se entende por commodity agrícola, bastando que tenha sido colocada no mercado Britânico pela empresa – quer o produto esteja in natura (grãos, carnes), quer incorporado a algum produto final (por exemplo óleos vegetais, estofados de couro em veículos, cosméticos, alimentos).

O Reino Unido sabe que essas commodities agrícolas fazem parte de cadeias globais de produção e que, para banir de seu mercado interno a chegada de produtos que tenham uma origem ilegal, precisará alcançar os países fornecedores. Portais de grande audiência (The Independent, Bloomberg) e iniciativas especializadas (sites de monitoramento de produtos agrícolas) repercutiram a abrangência da iniciativa, chamando-a de uma repressão contra atividades ilegais em cadeias globais.

Em que pese a iniciativa britânica se tratar ainda de uma consulta inicial, reflexos possivelmente serão sentidos no Brasil e empresas terão que se adaptar para continuar integradas ao comércio internacional com o Reino Unido. Ilustrativo desse desafio é o estudo recém-publicado na revista Science, segundo o qual aproximadamente 20% das exportações brasileiras de proteína e soja são provenientes de áreas desmatadas ilegalmente.

As contribuições recebidas, no âmbito da consulta pública em andamento, irão influenciar a visão do DEFRA sobre o assunto, que, posteriormente, poderá propor uma legislação específica.

Embora ainda não se conheça as contribuições enviadas até aqui, algumas questões centrais podem ser antecipadas: o perfil das empresas obrigadas a conduzir as verificações a periodicidade e forma com que as informações deverão ser prestadas, bem como seu grau de acesso público; delimitação da extensão das due diligences a serem conduzidas na cadeia; o rol de leis locais abrangidas; a adoção ou não de uma lista de produtos que possuem commodities agrícolas incorporados; a definição de outras sanções civis a serem estabelecidas.

Encerrada a consulta pública, caso o governo decida prosseguir, uma proposta de lei será apresentada, estabelecendo as obrigações legais e quais empresas estarão obrigadas a atendê-las. Posteriormente, uma norma regulamentadora deve definir os detalhes necessários para a implementação da lei.

Em que pese os movimentos do Reino Unido e da União Europeia terem como pano de fundo as mudanças climáticas, um novo padrão de normas socioambientais está sendo definido para reformular o comércio internacional. Outros países desenvolvidos podem acabar seguindo caminho semelhante, como Canadá, Japão e Coreia do Sul, cabendo ao Brasil retomar e repactuar com urgência a concepção de uma agenda propositiva de políticas públicas, sob pena de não voltar a participar e influenciar as esferas internacionais de negociação.

Autores:

Lucas Mastellaro Baruzzi é mestrando em Políticas Públicas (King’s College London) pesquisador em Londres, mestre em Direito (USP), advogado (PUC-SP) e cientista político (USP). Atua com políticas públicas e relações governamentais. Sócio do escritório Barros Filho & Almeida Prado Advogados

Jeferson Manhaes é especialista na intersecção entre Inovação e Sustentabilidade, mestre em Relações Internacionais (Sorbonne), mestrando em Ecoinovação (Paris-Saclay), possui longa experiência internacional, atuando atualmente na co-criação de soluções que impactam tecnologia e meio ambiente

Thiago Munhoz Agostinho é advogado (PUC-SP), especialista em Direito Tributário (FDUSP), sócio de Buccioli | Braz de Oliveira | Agostinho Advogados Associados. Atua em temas regulatórios, assessorando empresas, principalmente italianas, de grande, médio e pequeno porte

Artigo publicado originalmente no Portal Estadão.

Fazenda ao prato: normas europeias que impactam o setor agropecuário brasileiro

Uma das ações importantes do Pacto Ecológico Europeu ou European Green Deal, apresentada em maio deste ano pela Comissão Europeia, é a “From Farm to Fork Strategy”, oficialmente traduzida para o português como “Estratégia Do Prado ao Prato” e, nesse artigo, denominada Estratégia da Fazenda ao Prato. Em síntese, o Pacto Ecológico Europeu é um conjunto de incentivos e obrigações que pretendem, num curto prazo (até 2024) contribuir para que a União Europeia avance no alcance da meta de neutralidade de emissões de carbono até 2050. Trata-se de um pacto geoestratégico, que permitirá à União Europeia exercer uma espécie de “pré-sanção ambiental”, impondo políticas compatíveis às do Bloco como pré-requisito para as relações comerciais com outros países.

A Estratégia da Fazenda ao Prato é considerada uma das principais políticas setoriais do Pacto Ecológico para alcance das metas climáticas. Seu objetivo é assegurar que toda a cadeia do alimento (da sua produção, transporte e distribuição ao consumo) tenha um impacto neutro ou positivo no clima e no meio ambiente. Em termos práticos, os alimentos produzidos terão que ter uma “pegada ecológica” no uso dos recursos naturais – tais como solo, água, área agricultável, ar etc. -, contribuindo para a recuperação ambiental e para o enfrentamento das mudanças climáticas.

Ou seja, a atividade agropecuária deverá estar associada a um conjunto de ações voltadas a promover um impacto positivo ou neutro nos recursos naturais – como, por exemplo, não desmatar, recuperar áreas degradadas, reduzir emissões de gases de efeito estufa, reduzir o uso de defensivos agrícolas, evitar o excesso de nutrientes, implementar ações para remoção de CO2 da atmosfera, reverter a perda de biodiversidade e das florestas.

Para que a Estratégia Da Fazenda ao Prato atinja seus objetivos, um conjunto de mais de 20 iniciativas serão lançadas até 2024, voltadas para a implementação de transformações amplas dos Estados membros da União Europeia e com efeitos imediatos nos países exportadores ao mercado Europeu. Dentre estas, a Estratégia prevê, por exemplo, um sistema de verificação de origem dos produtos, o que pode facilitar o embargo daqueles provenientes de áreas de desmatamento. A Estratégia sinaliza ainda para a criação de “um novo modelo de negócio”, referente à remoção de carbono da atmosfera por produtores rurais, remunerando-os por este serviço prestado – por exemplo, a partir da recuperação de solos e reflorestamento. Cabe ainda mencionar a iniciativa de criação de uma lei específica sobre dados das propriedades rurais, que pretende trazer transparência às práticas sustentáveis adotadas desde a produção. Propõe-se também uma profunda alteração sobre as informações em embalagens e rótulos dos produtos, para empoderar a decisão do consumidor também no que tange a aspectos sobre origem, mudanças climáticas, meio ambiente e responsabilidade social.

Como se nota, a Estratégia é abrangente, e estará sujeita a Diretivas específicas a serem expedidas pela Comissão Europeia ou aprovadas pelo Parlamento Europeu, voltadas a regulamentar, em pormenores, cada uma das iniciativas. Até aqui, a Estratégia Da Fazenda ao Prato foi bem recebida em sua fase de consulta pública – ainda que como um quadro-geral do que se almeja -, tendo recebido apoio de empresas do setor de alimentos, embalagens, química, saúde animal (tais como Bayer, Basf, Pepsico e Tetra Pak) e de associações e confederações de produtores europeus. Ao anunciar a Estratégia e dar publicidade às suas metas, a UE sinaliza as mudanças normativas que virão, permitindo que os setores econômicos se antecipem e se adaptem.

A UE declarou que fará uso de seu peso econômico e geopolítico para promover a diplomacia do “Pacto Ecológico” em fóruns multilaterais políticos, econômicos e ambientais e que irá colocá-lo como prerrogativa para a assinatura de acordos comerciais bilaterais e multilaterais. Além disso, todos os produtos, sobretudo químicos e agrícolas, introduzidos no mercado europeu “devem cumprir integralmente a regulamentação e as normas pertinentes da UE”, inclusive para “reduzir a contribuição da UE no desflorestamento e degradação […] a partir de medidas para evitar ou minimizar a colocação de produtos, no mercado europeu, associados ao desflorestamento.”

Com o anúncio da Estratégia Da Fazenda ao Prato em maio de 2020, já é notada uma mobilização da cadeia do agronegócio europeu para adequarem-se às iniciativas anunciadas e às Diretivas que virão, visando oferecer produtos que serão indispensáveis para o cumprimento das novas regras, para o aumento da produtividade e para mitigação do impacto aos recursos naturais. A título de exemplo, enzimas que reduzem emissões de gases de efeito estufa provenientes do processo digestivo do gado e serviços de tecnologia para aplicação eficiente de nutrientes no solo são um dos muitos produtos agrícolas que estão sendo desenvolvidos.

Tais diretivas terão também impacto na produção estrangeira, principalmente brasileira. O Brasil, com sua atual imagem na Europa fortemente associada ao desmatamento, deverá ser objeto de minucioso escrutínio dos produtores locais (já tradicionalmente refratários a aberturas do mercado europeu), e dos próprios consumidores europeus, além de enfrentar dificuldades frente a uma legislação socioambiental mais severa (que, na prática, tentará impor barreiras comerciais). Na França, grupos de distribuição como Carrefour e Casino têm sido pressionados para que adotem sistemas transparentes de rastreabilidade dos produtos que vendem.

No que tange às características gerais do setor agropecuário brasileiro, é correto dizer que um sistema coeso para medir, reportar e verificar os impactos da atividade será cada vez mais determinante para a prosperidade do negócio e para valorização das empresas e produtores que pretendem acessar o mercado europeu.

Nesse sentido, os participantes da cadeia agropecuária terão que aprimorar seus mecanismos de controle e mensuração, adicionar transparência às suas práticas e estarem sujeitos à verificações periódicas de governos, compradores, consumidores e sociedade organizada. Para assegurar que o produto atenda aos requisitos de desempenho socioambiental, por exemplo, será indispensável a rastreabilidade do produto desde seus fornecedores; a adoção de certificações (por exemplo de manejo florestal, a Forest Stewardship Council – FSC, e a de agricultura sustentável, a Rainforest Alliance Certificate); a condução de due diligences para identificar práticas non-compliance; e uma avaliação de impacto sobre o uso dos recursos naturais visando progressiva melhoria dos indicadores. Ilustrativo dessa necessidade foi o estudo recém publicado, na revista Science, de que aproximadamente 20% das exportações brasileiras de proteína e soja são provenientes de áreas desmatadas ilegalmente.

A adaptação aos novos padrões de desempenho socioambiental, definidos unilateralmente pela União Europeia, poderá ser aproveitada por meio de uma “onda verde” de oportunidades no Brasil, alavancando pesquisa e desenvolvimento. Não se pode perder de vista que a União Europeia é a primeira origem de investimentos estrangeiros diretos no Brasil. Com 450 milhões de habitantes, o bloco europeu possui capacidade de consumo inédito no mundo, ficando atrás somente dos EUA e à frente da China em termos de PIB, com 18,2 trilhões de dólares. O Brasil, 9o maior exportador para a Europa, viu suas exportações aumentarem em 17% em 2020, ao longo dos últimos 14 anos, e detém um superávit de quase 5 bilhões de dólares nas relações comerciais com o grupo.

Governo e setor privado podem, por exemplo, liderar cadeias estratégicas, como a chamada “descarbonização da agricultura”. Isso porque o Brasil é o 2o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo para atividades provenientes da agropecuária, emissões principalmente do processo digestivo do gado, do uso de fertilizantes nitrogenados e do manejo de solos agrícolas. Já com relação a mudanças no uso da terra (desmatamento, degradação dos solos), o Brasil é o 3o maior emissor, notadamente pelo desmatamento na Amazônia e no Cerrado.

A partir das Diretivas que a União Europeia pretende impor, as oportunidades serão das mais variadas possíveis – por exemplo, para desenvolvimento de uma alimentação animal que substitua a soja proveniente de áreas desmatadas (a UE projeta até mesmo financiamentos dedicados à pesquisas para uso de insetos na alimentação animal); e o desenvolvimento de enzimas que reduzam as emissões de gás metano pelo processo digestivo do gado. Outro campo promissor é o da agricultura de precisão, podendo o Brasil ser um celeiro global das chamadas agritechs (ou startups do agro). Diz a Estratégia Da Fazenda ao Prato que a meta de redução do desperdício (ou excesso) de nutrientes será de pelo menos 20% até 2030, criando uma demanda para serviços de tecnologia no campo.

Para essa transição necessária na agricultura, a Estratégia da Fazenda ao Pasto anunciou um apoio financeiro por meio de um fundo específico. O Horizon Europe, o novo programa de incentivo ao desenvolvimento de pesquisa e inovação da União Europeia, trará um aporte de 100 bilhões de euros (aproximadamente R$ 650 bilhões de reais), dividido em 5 missões, das quais 4 estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. Uma delas é de interesse particular ao Brasil, pois pretende financiar pesquisas e inovações com países parceiros para preservar o uso do solo para a produção alimentícia – um recurso natural essencial para a produção agrícola. A Europa já é uma referência no setor, pois os Países Baixos, país-membro do Bloco, mesmo 200 vezes menor que o Brasil, é o segundo país exportador agrícola do mundo, graças a tecnologias que otimizam a utilização do seu solo, atrás apenas dos Estados Unidos.

As oportunidades são sedutoras, mas cabe alertar para o risco de um aprofundamento das desigualdades no campo e para o risco de pequenos agricultores não terem acesso aos recursos, tecnologias e boas práticas necessárias para participarem dessa nova cadeia do alimento. Um protagonismo maior do Estado é essencial nesse aspecto.

Olhando para a resposta brasileira a essa nova configuração geopolítica dos mercados, vemos pouco ou quase nenhum entusiasmo por movimentos que possam tornar o País protagonista de boas práticas sustentáveis na área ambiental. Está claro que a reação necessária deve vir também do Executivo e do Legislativo.

Ressalvadas as reações positivas que começam a surgir em alguns setores econômicos (preocupados com a depreciação de ativos e o risco de falta de acesso a mercados) e a contribuição de entidades organizadas, universidades e um grupo de empresas de vanguarda, falta protagonismo por parte de autoridades e entidades públicas para liderarem, internamente, uma transformação na cadeia agropecuária e, externamente, para reposicionarem o Brasil com legitimidade para influir em negociações internacionais (por exemplo, no acordo comercial UE-Mercosul).

Muito embora exista um esperançoso conjunto de iniciativas legislativas sobre o tema, nenhum dos Projetos de Lei atualmente em curso possuem mecanismos sólidos, de aplicação prática imediata, que possam dar largada a uma verdadeira corrida verde, pró-clima, brasileira. Pelo contrário, dependem ainda de muita atividade legislativa, intensos debates e de regulamentação para se tornarem efetivas normas de controle, de desenvolvimento de políticas públicas concretas ou de concessão de benefícios e estímulos aos setores produtivos. Estamos, de fato, longe do tema.

Diante desse quadro, lideranças da Câmara dos Deputados passaram, recentemente, a articular uma resposta legislativa a partir da priorização de um conjunto de projetos de lei. De autoria do Deputado Alessandro Molon, o PL 3961/2020, por exemplo, declara o estado de emergência climática, estabelecendo como meta para a neutralização das emissões de gases de efeito estufa no Brasil o ano de 2050 (o que corresponderia à meta do Acordo de Paris para os países desenvolvidos). Já o PL 7578/2017, do Deputado Zé Silva, busca “monetizar” a preservação de áreas verdes através da emissão de títulos semelhantes aos créditos de carbono – apesar de bem-vinda, a proposta não tem sinergia com o funcionamento do mercado internacional de carbono, limitando o potencial da iniciativa. Paralelamente, outros Projetos de Lei visam o recrudescimento das penas para os crimes ambientais, mas vêm acompanhados de certo ceticismo, tendo em vista a atual incapacidade administrativa de fiscalizar e punir práticas ilegais (são eles, o PL n.º 3337/2019, do Deputado Rodrigo Agostinho, e o PL n.º 4689/2019, do Deputado Zé Vitor).

O Brasil também foi alvo de recentes reivindicações, principalmente vindas de grandes empresas, para implementação de políticas de proteção ao bioma amazônico e anúncio de ações voluntárias em prol de uma agenda verde (por exemplo, as lançadas em conjunto pelo Bradesco, Itaú e Santander). Esse fato fez com que o Governo prorrogasse a operação Verde Brasil, cujas ações são coordenadas diretamente pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Outra medida governamental, dialogada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, em 2019, através do Plano Plurianual, foi o compromisso de nos próximos 3 anos reduzir em 90% o desmatamento e os incêndios ilegais em todos os nossos biomas.

Contudo, são iniciativas que não estão surtindo efeito, conforme dados amplamente divulgados sobre o desmatamento e focos de queimadas. Ao nosso ver, iniciativas somente de fiscalização e punição não estimulam, como deveriam, as boas práticas ambientais e o avanço da pesquisa e desenvolvimento.

Temos visto, no mercado financeiro, uma tendência de alta na procura por fundos verdes e de papéis de empresas que incorporam em sua governança a preocupação socioambiental. Embora ainda incipiente, a expectativa é de que gestoras e instituições financeiras passem a incluir mais opções na carteira e ofereçam alternativas desse segmento para investidores na medida em que as discussões pró-clima passem a ser priorizadas. Em um cenário de médio a longo prazo e de progressiva implementação de boas práticas ambientais, sociais e de governança (a chamada ESG), quem sabe as green chips de hoje não serão as blue chips de amanhã.

A “euro dependência” na implementação de uma agenda pró-clima e pró-ambiente, associada ao comportamento do Brasil em não liderar um movimento internacional de valorização das boas práticas ambientais, custará ao País perda de oportunidades de desenvolvimento interno e um longo processo de reversão reputacional. Além de poder trazer sérios impactos às exportações brasileiras por meio de bloqueios comerciais. Internamente, a agenda precisa ganhar corpo, inclusive para que pleitos legítimos do Brasil sejam colocados nos fóruns de negociação para definição de regras de transição, períodos de adaptação e formas de cooperação para pesquisa e desenvolvimento.

Autores:

Lucas Mastellaro Baruzzi é advogado (PUC-SP), mestrando em Políticas Públicas (King’s College London), mestre em Direito (USP), e cientista político (USP). Atua com políticas públicas e relações governamentais.

Jeferson Manhaes, especialista na intersecção entre Inovação e Sustentabilidade, mestre em Relações Internacionais (Sorbonne), mestrando em Ecoinovação (Paris-Saclay), possui longa experiência internacional, atuando atualmente na co-criação de soluções que impactam tecnologia e meio ambiente.

Thiago Munhoz Agostinho é advogado (PUC-SP), especialista em Direito Tributário (FDUSP), sócio de Buccioli, Braz de Oliveira, Agostinho Advogados Associados. Atua em temas regulatórios, assessorando empresas, principalmente italianas, de grande, médio e pequeno porte.

Artigo publicado originalmente no Portal Estadão

Encarregado pelo tratamento de dados pessoais no Brasil e o famoso ‘DPO’ europeu

Diante da iminente entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18 – LGPD) que aguarda a sanção do Executivo, chama muito a atenção no feed de notícias das redes sociais e outros meios de comunicação dos escritórios jurídicos e consultorias, muitas ofertas, algumas delas até “patrocinadas” oferecendo cursos de como virar um DPO (Data Protection Officer) no Brasil. Curiosamente a lei brasileira não fala expressamente sobre DPO, em verdade o termo é uma designação estrangeira fixada pela General Data Protection Regulation (EU GDPR). Muitas questões surgem, afinal DPO e encarregado são profissionais semelhantes? Há espaço para inovar e flexibilizar o campo de atuação deste profissional da proteção de dados no Brasil?

Vale lembrar que muitas questões técnicas da LGPD ainda não foram definidas, inclusive a lei atribui esta competência para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – recentemente estruturada como órgão de governo – , como no caso da definição das hipóteses de comunicação e uso compartilhado de dados entre pessoas jurídicas, ou ainda acerca da possibilidade de definir as atribuições e hipóteses de dispensa do encarregado. Hoje, portanto, não se sabe ao certo quais são os requisitos ou características mínimas necessárias para exercer as atribuições do encarregado no país.

Devemos aguardar a regulamentação pela ANPD? O mercado sinaliza para outra direção e indica que o espaço em relação à atuação do encarregado é plural e em construção, o que não implica necessariamente em importar e repetir as experiências estrangeiras. É possível defender uma atuação específica deste profissional considerando as particularidades da sociedade brasileira, na qual parcela da população ainda enfrenta seríssimos problemas de acesso à banda larga e aos distintos serviços públicos e privados disponíveis na rede, adiciona-se ao cenário a dificuldade de assegurar na prática as liberdades civis nesses ambientes, como a própria privacidade. Este é um debate que a ANPD deve levar adiante e consultar a comunidade no momento de elaborar as normas complementares, além é claro de evitar os processos de captura regulatória.

Do ponto de vista prático, existem boas razões (jurídicas e técnicas) para a nomeação de imediato do encarregado no Brasil – a exemplo de alguns países sul-americanos como é o caso de Uruguai, que recentemente ditou a Resolução 44/020 de 21 de julho de 2020. Primeira razão decorre do próprio texto da LGPD, que estabelece uma série de obrigações para as empresas controladoras dentre as quais se destaca a nomeação do encarregado. A LGPD define a figura do encarregado como o responsável pela orientação sobre o tratamento e o monitoramento da implementação de medidas protetivas aos dados pessoais, indicado pelo controlador e que atua como canal de comunicação perante a ANPD e os titulares dos dados. Como intermediador desta comunicação, o encarregado precisa compreender as demandas de todos os lados para propor e orientar os colaboradores, funcionários e contratados da empresa sobre a melhores práticas a serem tomadas para viabilizar o tratamento de dados pessoais. A segunda razão derivada da primeira é que o encarregado opera como um dos principais mecanismos para a efetiva mudança cultural de fundo pressuposta pela legislação no ambiente corporativo.

Tal avaliação é muito importante para o profissional que pretende avançar na formação no campo da proteção de dados e privacidade, sobretudo diante de tantos cursos disponíveis no mercado que já tratam sobre DPO. Para além de apresentar as práticas estrangeiras, será que estamos preparados para ensinar e discutir os desafios locais ao implementar uma legislação tão importante?

A compreensão dogmática e técnica da segurança da informação precisa estar vinculada ao contexto social da pandemia que enfrentamos e dos problemas dos sujeitos subintegrados ao sistema jurídico no país, que lida diariamente com os efeitos de restrição de liberdade tendo em vista a incapacidade estatal de cumprimento e proteção dos dados. Basta pensar no caso do mecanismo implementado para o pagamento do auxílio emergencial da Caixa Econômica Federal, que exigiu como regra geral o cadastro por meio de aplicativo e, posteriormente, a própria empresa pública teve dificuldades de implementar o auxílio. O resultado foi o bloqueio de 1.303.127 milhão de cadastros por possíveis fraudes diante da operação de hackers. Muitos necessitados ficaram sem o atendimento devido e tiveram seus dados expostos a partir da implementação de medidas pelo governo. Este caso revela que a tarefa não é fácil para ninguém, o que reforça a importância do papel do encarregado na sociedade brasileira para além da sua expertise técnica e jurídica.

Não obstante às discussão apresentadas sobre a formação de encarregados no país, é possível propor também múltiplas configurações em relação ao perfil deste profissional diante dos mercados. O encarregado pode ser sim designado dentro da mesma empresa, por exemplo, vinculado ao corpo diretivo, ao CEO, ao chefe do departamento do TI, de RH, uma pessoa física, mas também pode ser um terceiro externo, fora da empresa, seja pessoa física ou jurídica. Esta decisão vai depender dos interesses do controlador, responsável por nomear o encarregado. Percebe-se, assim, que esta variedade é uma contribuição muito interessante para o desenvolvimento da trajetória desta nova profissão no Brasil. Aliás, a depender do volume da demanda e do porte da empresa, é possível cogitar como já acontece com a GDPR que um grupo de empresas aponte um único DPO para representá-las. Às vezes as tarefas são tantas e diversas que, inclusive, pode ser necessário ter um grupo de profissionais em rede que ocupem esse lugar, especialmente se a empresa tiver atividades em outros países. Não existe uma única configuração ou modelo a ser seguido.

Uma atenção final deve ser enfatizada neste processo de escolha de um encarregado já que é imperioso evitar ao máximo possíveis conflitos de interesse no desempenho das atribuições dentro da empresa. Afinal, este profissional deve se manifestar de modo imparcial em relação ao monitoramento e implementação da política de privacidade, além é claro de conseguir avaliar a licitude das atividades de tratamento de dados sem interferência da empresa. Logo, o exame da integridade, preparo técnico e do elevado nível de ética profissional pressuposto deve ser colocado à mesa na hora de decidir e identificar um encarregado.

Considerando as características de destaque que devem ser observadas ao nomear um encarregado de proteção de dados, entendemos que o profissional deverá conseguir conhecer em profundidade as atividades de tratamento de dados realizadas pelas empresas, ter noções da atividade econômica da mesma, e entender o sistema de segurança da mesma por um lado. Assim como se comunicar facilmente com os titulares e com a Autoridade, de modo a ser capaz de responder em tempo hábil possíveis solicitações dos titulares ou autoridades locais. Isso porque a habilidade em responder de maneira eficiente a tais solicitações está diretamente relacionada aos princípios de livre acesso (art. 6º, IV) e da transparência (art. 6º, VI) trazidos pela LGPD.

Diante das importantes tarefas que este profissional desempenha na sociedade, inclusive em razão das atribuições legais, é suficiente compreender as sinalizações do mercado e apostar no exame interno das reais necessidades e possibilidades de cada empresa para proceder com a escolha. É o caso de admitir a atuação de diferentes encarregados para atender as diversas atividades econômicas dependentes de tratamento de dados pessoais.

Artigo publicado originalmente no Portal Estadão

Autores:

Flavia Meleras Bekerman é especialista em Direito Digital, Proteção de Dados e Privacidade

Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros é consultor do BFAP Advogados e professor da Universidade Presbiterana Mackenzie

Saiba quais são as regras e cuidados para o saque do FTGS

A crescente rentabilidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) faz com que os trabalhadores tenham cada vez mais cautela ao decidir sobre o saque dos recursos no fundo ou mantê-los preservados. O Governo Federal anunciou recentemente a distribuição proporcional de R$ 7,5 bilhões, com um valor médio de R$ 45, entre as contas que possuíam saldo na data de 31 de dezembro de 2019. Os valores estão previstos para serem depositados no dia 31 de agosto e poderão ser consultados por meio do aplicativo FGTS e do site da Caixa Econômica Federal.

Especialistas apontam que a distribuição de valores fez com que o rendimento do fundo alcançasse o percentual de 4,9% ao ano em 2019. Por conta disso, é importante que os trabalhadores conheçam os casos em que pode ser realizado o saque do FGTS e avaliem a opção de manter os valores investidos.

O advogado e professor Fernando de Almeida Prado, sócio do escritório BFAP Advogados, explica que as formas de saque mais usuais hoje são após a rescisão sem justa causa de contrato de trabalho ou para a compra de imóvel financiado. “Além destas hipóteses, existe a previsão do saque-aniversário, que deverá ser requerido no mês de aniversário do empregado”, afirma.

O saque-aniversário segue escalonamento similar ao cálculo do Imposto de Renda (IR). Tabela permite o saque de 50% do saldo de contas com até R$ 500 depositados, por exemplo, e de 5% mais o montante de R$ 2.900 para fundos com acima de R$ 20 mil depositados. Trabalhadores que optam pelo saque-aniversário perdem o direito ao saque integral no caso de demissão sem justa causa.

O governo também havia permitido por meio da Medida Provisória (MP) 946, para atenuar o impacto da pandemia da Covid-19 (coronavírus) na economia, a possibilidade de um “saque emergencial” no valor de até R$ 1045 até 31 de dezembro de 2020. A medida perdeu a validade no início de agosto e o governo deve apresentar Projeto de Lei (PL) ao Congresso Nacional para resgatar o modelo. Estão ainda em tramitação o PL 4085/20, do deputado Marcelo Van Hattem (Novo-RS), e o PL 4193/20, da deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), que resgatam a possibilidade.

Outros casos em que o saque é permitido são no momento da aposentadoria pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); no encerramento do contrato de trabalho por meio de acordo com o empregador; no término de contrato temporário; no caso de necessidade pessoal decorrente de desastre natural; quando o titular da conta possui mais de 70 anos; quando o trabalhador ou seu dependente for portador do vírus HIV, neoplasia maligna (câncer) ou doença em estágio terminal; e na aquisição de órtese ou prótese por trabalhadores com deficiência. Neste último caso, é necessário que laudo médico seja submetido no site da Caixa Econômica Federal. Os saques do FGTS podem ser feitos nas agências do banco, em lotéricas ou em outros correspondentes bancários.

Matéria publicada originalmente na edição impressa de A Tribuna de Santos (SP) e no Portal da Previdência.

A greve do Século XXI: forma de solidariedade

Fernando de Almeida Prado*

Diz-se que no cais de Paris - à beira do Rio Sena - havia uma praça na qual trabalhadores se reuniam em longas filas, em busca de emprego e de uma oportunidade de vender seu tempo em troca de dinheiro. De tempos em tempos, com os naturais conflitos entre patrões e trabalhadores, era comum que estes cruzassem os braços e se recusassem a realizar qualquer trabalho. Muitas vezes, os trabalhadores ficavam parados por dias, até que algum dos lados cedesse: ou os patrões aceitavam as condições dos trabalhadores, ou estes desistiam do conflito e voltavam a trabalhar.

Esta praça à beira do Rio Sena se chamou Place de Grève até 1803. É ela quem deu nome aos trabalhadores que se recusam a trabalhar em busca de melhores condições de vida. Ao longo de muitos séculos de sua existência, a greve deixou de ser um simples movimento de pessoas para se tornar - inicialmente - um ato de rebeldia criminoso e, modernamente, um direito social fundamental mundialmente reconhecido.

A história do Brasil não pode ser estudada sem adentrar nos movimentos grevistas. Por motivos e fundamentos distintos, as greves movimentaram o país e derrubaram regimes e ditaduras. O movimento sindical sempre foi um forte vetor de transformação social e política, de índole progressista: impulsionou desde o fim da República Velha, nos anos 1930, ao fim da Ditadura militar, já nos anos 1980.

Como resultado de tantas lutas, a Constituição de 1988 elencou o direito de greve como direito fundamental, "competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender". Lembrando que mesmo os direitos fundamentais devem ser limitados, o exercício do direito de greve foi temperado pela lei n. 7.783/89. Referida lei possui regras de diversos tipos: algumas visam organizar a greve, outras estabelecem direitos e ainda algumas limitam o poder patronal no momento da crise.

A lei exige que os trabalhadores comuniquem a intenção de realizar greve, com antecedência de 48 horas, para as atividades não essenciais, ou de 72 horas, para as atividades essenciais. A definição de atividade essencial ou não decorre da própria lei: esta prevê um rol de atividades essenciais (ex: tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; etc.), nas quais é obrigatória a manutenção de atividades indispensáveis para a população. Todas as demais atividades são consideradas "não essenciais".

Desde 1989 não existe a exigência de autorização prévia para realização de greves, mas a lei proíbe a realização de atos abusivos ou que não tenham relação com as efetivas condições de trabalho. Nestas hipóteses, é comum que os sindicatos sejam penalizados com altas multas em caso de descumprimento e manutenção de greve abusiva.

De modo formal, as pautas sindicais deverão ser previamente deliberados por meio de Assembleia da categoria, não sendo permitida a greve quando houver acordo vigente entre as partes. Além disso, a lei permite que o Poder Judiciário "resolva" a greve por meio de julgamento de dissídios coletivos, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, o que muitas vezes é feito de modo artificial para ambas as partes.

Em defesa de direitos, a lei impede a demissão de trabalhadores durante o movimento grevista, e também a contratação de trabalhadores substitutos, com objetivo de esvaziar a greve. Outro direito dos trabalhadores, que é extremamente importante, mas muitas vezes esquecido, é a proibição da realização de greves empresariais, denominada de Lockdown.

No início deste mês de julho, trabalhadores de aplicativos - que formalmente são consideradas autônomos e não possuem registro de emprego com nenhuma empresa - decidiram realizar movimento grevista. É ao mesmo tempo curioso e revigorante perceber que, no atual momento de crise institucional e democrática que vivemos, o direito de greve começou a ser exercido por trabalhadores que não estão vinculados ao tradicional modelo de trabalho CLT.

Descartando toda a modelagem legal burocrática, a greve dos "funcionários de aplicativos" (funcionários entre aspas, uma vez que estes empregados - paradoxalmente - não tem empregadores) é um choque de realidade ao modelo capitalista atual, cuja desregulamentação e ausência de limites ganham cada vez mais força. De modo profundo, a greve despertou solidariedade por parte dos consumidores e de todos aqueles que se vêem em luta contra a precarização das formas de trabalho.

Torcemos para que a greve no século 21 volte a ser uma forma de expressão de solidariedade social e atenção da coletividade para as classes menos favorecidas.

(Artigo publicado originalmente na versão impressa do Diário do Grande ABC)

*Fernando de Almeida Prado é advogado, professor universitário e sócio-fundador do escritório BFAP Advogados